CURIQUEIRO

A curicagem, que na Bahia se diz bispada e de Fortaleza para cima curiçaca, nasceu ninguém ignora como roubalheira em Guimarães no Portugal: é a noite (num dia que ninguém sabe) em que uma confraria de estudantes sai pela cidade, roubam da casa dos cidadãos todo tipo de bens e amontoam na praça, onde manhã seguinte o cristão tem de esmiuçar a pilha em busca cada um de reaver a coisa que lhe foi surrupiada.

O milagre não pequeno da roubalheira, de transformar o furto de bens privados em atividade comunitária compulsória, não deixou de enternecer o impenitente frade mucugê Henrique de Souza Filho, que visitou Guimarães na festa de São Nicolau em 1694 e furtou ele mesmo a prática para o Brejaú na virada do século 18.

O primeiro registro da curicagem no serestão é de 1703 em São Mamede na Paraíba (escolhida quem sabe pela irmandade sua torta com Guimarães):

Roubaram mesas não foi meia dúzia, livros, púlpitos, quadros, porcos, bibelôs, carroças, bigornas e galos e objetos de toda qualestria, um pertence de cada família, e largaram tudo na frente como combinado da Paróquia de Senhora da Conceição,

narra Manuel Anastácio Feliz, português que veio de Guimarães para acompanhar o batismo. Felicidade sua não demorou porém a resvalar em perplexidade porque, ao contrário dos guimaranenses, os paraibanos compareceram à praça não para reaver os bens que lhes tinham sido subtraídos, mas para trazer (“contrário a todas as regras da festa”, lamenta Manuel Anastácio) outros objetos e parentes de que queriam se desfazer.

Não sendo gente incivil, os são-mamedenses acabaram recolhendo da pilha algum objeto ou animal de outra propriedade para levar para casa de recordação. Deixaram na praça só o que tinha verdadeiro valor, e é desse modo que a festa é ainda hoje celebrada no Norte.

Curiqueiro não é o sujeito que o organiza o furto: é quem deita com antecedência, segundo o seu juízo, a lista dos objetos a serem roubados. É pago em numerário da confraria, que é safanão. Câmara Cascudo jura que curiqueiro se pode ser uma vez na vida outra na morte.


Este texto é a parte 1 de 1 da série Profissões verdadeiras do serestão:

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