Exatamente, sou casado, sou amante do gigante Bazaró e não, não confirmo e não nego que as fotos que circulam de nós dois sejam retocadas. O motivo que me leva a falar é precisamente este: não importa.
Não mataram Bazaró pela intimidade que ele dividia como e com quem quisesse e, espero por eles e por elas, com outros além de mim.
Bazaró o gigante não mataram pela sua heterodoxia sexual; tampouco, e incrivelmente, não morreu pelo seu ativismo na luta de classe, pela defesa sua dos direitos civis (que ele nunca, posso garantir, chamaria por esse nome); não pela mais aguerrida, engajada e corpórea oposição aos canteiros da guerra – coisas cada uma dessas que acabam conferindo ao sujeito inimigos não poucos nem pequenos: não foi por elas, não foi por eles que morreu.
Vilarinho Bazaró, ninguém queira esquecer, estava na Europa fazia uma vida – vivendo na curva entre Portugal e a Grécia sem jamais reconhecer uma fronteira ou uma língua – mas não era daqui, tendo saído da Paraíba nos anos oitenta dos novecentos só porque era seguro de que a Paraíba dele não tinha ela como sair.
Filho assim – com o perdão da palavra – inzoneiro do sertão, cria arretada e arrebatada do serestão, Bazaró nele não cabiam categorias que na Itália e na alça toda ocidental do hemisfério norte estão estabelecidas e bem.
Ninguém no hemisfério norte, e como exemplo este deve bastar, explica o mundo através das causas móveis – de que Bazaró me falou pela primeira quando estávamos os dois com os pés descalços na corrente gelada e verde madrepérola do Serchio, em algum lugar de outubro entre Fornaci di Barga e Bagni di Lucca. Quando era? 2007?
Causas móveis é o mote de uma difusa filosofia popular brasiliana, e a quem não teve amante da Paraíba explico a teoria com palavras minhas: tudo tem causa, mas aquilo se manifesta num padrão regular não tem causa fixa. O sol se levanta todas as manhãs, mas cada dia o faz por um motivo diferente – uma causa móvel – e, podemos supor, através de um mecanismo diverso.
Funciona a psicologia humana da mesma forma: sujeito ama a pessoa amada todos os dias, mas cada dia (quem sabe cada momento) è movido por uma causa diferente: o comportamento parece fixo mas as causas são móveis. Deus existe, mas cada dia por um motivo que não aquele do dia anterior. Não importa se as causas em questão são cíclicas, alternantes ou infinitamente diversas entre si. Não importa nem mesmo determinar as causas ou descobri-las: conta entender que são móveis.
Um resíduo cultural dessa visão de mundo é um sentimento difuso de libertação do determinismo: se aquilo que percebemos como padrão regular não tem uma causa fixa (e portanto única e irresistível), romper o padrão torna-se (ou passa a nos parecer) menos difícil de realizar. Se as causas que nos parecem fixas são móveis, resulta que nada é de fato permanente, e no fim tudo e todos podem mudar.
Ouvir sobre as causas móveis levou a mim, romanaccio di Pietralata, a ler sobre o perspectivismo de Eduardo Viveiros de Castro, sobre as traduções arrombadas dos clássicos de Saíra e Praxedes, sobre os estágios de alteridade dos indígenas, sobre a monarquia desregrada dos mucugês, sobre o tei tei dos guajajaras, sobre cordel e repente e embolada e umbanda e bolodório e emboança e troncadura e cultura de botequim – todas travessas que convidam continuamente o brasileiro (ao contrário do europeu e do norte-americano, condicionados que são por outra pasta) a não pensar em categorias binárias.
No Velho Mundo existimos desprovidos dessas válvulas de segurança – as quais, pelo que me dizem, não bastam nem mesmo aos brasilianos.
E aqui entra Bazaró, que não chegasse ser filho do serestão também gigante era. Flaubert, aquele grande cínico, dizia que se a literatura está cheia de gigantes bons é por projeção nossa, não pelos méritos dos gigantes: “fôssemos grandes e e fortes, não conhecendo quem nos ameaçasse, também nós nos daríamos o luxo da bondade”. Mas ficar quieto não, Flaubert? Nunca um homem destruiu um formigueiro?
Tudo enfim contribuiu: a matar Bazaró foi incapacidade nossa de entender o que ele estava fazendo com suas palavras e o que estava querendo dizer com o que fazia.
Se não: Bazaró interromper a guerra com as próprias mãos: “desempenho heróico” e “iniciativa inspiradora”. Bazaró entrevistado em Tel Aviv que chama de irmãos os protagonistas de conflitos recentes (“irmão Trump”, ele dizia, e ainda “irmão Putin”, “irmão Netanyahu” e “os irmãos de Hamas”): “problemático” e “na linha entre a imprudência e a conivência”. Bazaró dizer ao vivo em estúdio que, ocasião tivesse, chamaria de irmão o próprio Hitler: “desavisado” e “completamente inaceitável”. Bazaró visitar na prisão “irmão Bolsonaro”, “irmão Netanyahu”, “irmão Milei” e “irmão Ben Gvir”, e dizer a cada um que (no que lhe dizia respeito) estavam perdoados pelos seus crimes, ainda que teriam de cumprir as suas penas: “despropositado”, “irresponsável e reprovável”, “em si mesmo criminoso” e “um terrível erro de julgamento”.
Estava assim desenhada a curva da opinião pública/cobertura midiática entre o dia em que Bazaró desarmou manualmente a guerra e o que aconteceu menos de dois meses depois. Do aplauso à agressão aberta, quando Bazaró ele mesmo não agrediu ninguém, e por iniciativa sua quanta quem sabe de gente foi poupada da agressão.
«Vossia precisa ver» eu lhe disse naqueles últimos dias, «que o povo deixou de vigiar a maldade só de quem é condenável; hoje se vigia com maior rigor se a pessoa boa está condenando o criminoso com uma intensidade que se julga suficiente. Com história essa sua de sair perdoando lampreia homicida, acabou que perdesse o cacife todo que ganhasse com a fechadura da guerra. É tudo pessoal hoje, meu camarada, e cada um defende o seu acusando o outro. A bondade nesse ringue sujeito tem que demonstrar com postagem, e é certificada com ódio só. Aiditê se não, aiditê.
«Essa gente perdeu o bonde em que São Francisco alargou-se ao Egito e foi sentar em paz com o sultão al-Malik al-Kamil? Perderam o trem em que Nazarinho perdoou os jegues que o crucificavam e votou na cédula de amar os inimigos? Menos pelega essa gente, nada? Com quanto menos de subversivo esse mundo decidiu se conformar, italiano? Que demônio convenceu essa raça de esquerda de que o vigiar e punir de Foucault era um projeto a ser colocado em prática?
Disse essas e outras coisas e aquela noite não se acalmava por nada. Saiu nu como estava e aferrou com as mãos os ciprestes do jardim fossem colunas de Sansão. O vento siroco, aquele amante do drama, fazia tremer com a saliva sua morna as folhas e as peles.
Três dias depois saltava ou foi jogado do alto da Pedra de Bismantova.
