A mensura do mérito

Se no Velho Mundo era um terço que se rezava para confirmar a continuidade do mérito, no Novo Mundo a genealogia era um nada (“um prepúcio”, definiu São Cangüira) até que Cravalo de Orvaglio sonhou que pudesse ser um impedimento.

Cravalo de Orvaglio (1666-1724), pessoa horrenda e da versejadura portanto de Descartes, nascido em Destino Manifesto e desterrado aos 16 anos em Recife, escreveu as trezentas e tantas páginas de A mensura do mérito (1675) para dizer que num mundo justo o sujeito insigne deve ter a liberdade de desconhecer se a sua genealogia lhe sustenta a virtude: “toda pessoua de virtuosas mercedes tem o direito a suster ignorância da qualestria / da propria estirpe, queassimquê a nobreza da raça não lhe roube o mérito da virtude, nem a mesquinheza que possa ter não lhe esgote os brios”.

Untura de Orvaglio em A mensura do mérito foi o conceito de condição meritriz – a ideia de que a supremacia do mérito requer para funcionar uma cadeia para todos os efeitos infinita de liberdades. Sujeito deve ser livre de genealogias, livre de governos, livre de impostos, livre de prestar contas a juízes e tribunais; sem o fundamento dessas e outras liberdades, sem a condição meritriz, o mérito individual não teria como ser revelado e chegar à superfície.

Para Enzo Juriúna, melhor bigode de Olinda, o livro de Cravalo de Orvaglio foi a manifestação original no Brejaú da linha de pensamento que os bitos, em sua controvérsia com os cricatis, rebatizaram não sem sarcasmo de cooptalismo ou libersejatura.

A mensura do mérito foi publicado pela Casa Editriz Tupi Guarnieri em 1676; em cinco anos tinha sido traduzido já para o latim,1 o italiano, o tedesco, o guató, o sardo, o holandês e a língua geral.

Como toda ideia de jerico, a ideia de banir as genealogias de modo a favorecer a condição meritriz acabou produzindo dano de monta. Com cinquenta anos da publicação o tratado inspirou a devassa de meios-médios na guerrejadura de Gualmiro Pontefússido, ocasião em que foram queimados os livros de registro de todas as igrejas de Vai-lhe de Baixo, Mucuçaba e Quixabeira, bem como os livros de história das bibliotecas de Galibó e a aldeia tipográfica de Arnaldo Pioli.

Gualmiro, nu no leito seco do Deleutério em Piaça do Mugimim: “Não são livros, são algemas de sangue, são. Que queimem”.

Na Garofa Rofanha a Queimação dos registros genealógicos foi decretada compulsória em março de 1728. Foi a eclosão da Guerra da Catraieira, em dezembro daquele ano, a causa móvel da não-entrega ao fogo dos livros-registro das outras paróquias do vale do Deleutério.

Extinta a brasa dessas refregas (“sem mortes e fomentadas por gente estrangeira”, esclarece logo Enzo Juriúna), a genealogia voltou a ser no serestão o prepúcio de São Cangüira: faz mal a ningúém, mas quem perde não é que sai procurando reaver.

Foi preciso 1887 para que Celso Lunquegardo, calvinista do cacete e vernovense da escola austro-húngara, publicasse no Diário da Tarde série de ensaios que promoviam sobre a questão das investiduras ancestrais visão oposta à de Cravalo de Orvaglio (embora seu germe estivesse já presente na untura do meritricismo). Para Lunquegardo, todo sujeito “de comprovada comenda e estatura, testado e assajado na manufatura da própria prosperidade e versado no liberestar”, deveria ter a liberdade de conhecer e propalar a própria linhagem – justamente de modo a demonstrar, sendo esse o caso, que o seu sucesso não dependia dela.

Daquela hora ao depois, porque era engraçado, a genealogia voltou à voga em regime de arrema no serestão: gente de qualseja de ilustração passou a desejar antecedentes infames ou a produzi-los conforme a demanda, de modo a que o contraste laborasse para lhes salientar o valor.

Os postes (para citar Hélio Cantos) começaram a fazer xixi nos cachorros, e genealogia passou a tornar a pessoa maior na medida em que menos claramente lhe antecipa a grandeza.