Luis Antonio Simas
É aí que localizo na minha cidade o espaço de resistência a esses padrões uniformes do mundo global – o botequim. O buteco é a casa do mal gosto, do disforme, do arroto, da barriga indecente, da porrada, da grosseria, do afeto, da gentileza, da proximidade, do debate, da exposição das fraquezas, da dor de corno, da alegria do novo amor, do exercício, enfim, de uma forma de cidadania muito peculiar.
A luta pelo buteco é a possibilidade de manter viva uma Ágora efetivamente popular, espaço de geração de ideias e utopias – sem viadagens intelectuais, mas fundadas na sabedoria dos que têm pouco e precisam inventar
Para combater esse Brasil veneno que se descortina na perda das delicadezas do mundo, só mesmo esse Brasil remédio de Villa e Elizeth, minha terra dos presépios mais precários, das bandinhas de pastoris e lapinhas do Nordeste, dos enfeites das moças dos cordões azul e encarnado, e das folias que homenageiam – entre cachaças, cafés e bolos de fubá, gentilmente servidos pelos donos da casa – os Reis do Oriente. Meu Brasil de aboios, louvores, comidas, leilões de prendas, namoros, cheiros e bordados; terra de afetos celebrados que permitem a subversão – pelo rito – da miudeza provisória da vida. Meu Brasil de pajelanças
A confissão: escrever sobre a crise da zona do euro ou a ascensão do nacionalismo no mundo é covardemente mais fácil do que se pronunciar com qualquer lucidez sobre o que acontece neste país.
Se o mundo é complexo, o Brasil é excepcionalmente. As correntes que cortam e definem o planeta são pelo menos visíveis e mapeadas. Em comparação, não há nome ou disciplina que corresponda a muita coisa que acontece no Brasil.
Não é à toa que entre nós tanta gente reputada escreve tolice sem perder a reputação. O Brasil é um estado de exceções,
As ondas brincaram tempo com as pernas de Douzemar antes que ele despertasse de boca na areia. O paraibano tossiu, cuspiu e cambaleou três ou quatro passos madrugada adentro, e entendeu pela posição do Pão de Açúcar que aquela era uma versão de pesadelo da praia de Botafogo, uma versão em que a noite tinha sido desterrada pela vigília dos holofotes.
Entendeu também que estava muito bêbado, cheirando azedo e gostando vômito e cachaça, e não recordava ter tido ocasião para os prazeres que lhe estavam cobrando essas restituições. Sua lembrança terminava com o sangue branco do abotoado requerendo a plataforma no alto do morro,
Luiz Antonio Simas
O processo de morte do futebol como cultura reduz o jogo ao patamar de mero evento. Contamina, inclusive, o vocabulário, que perde as características peculiares do boleiro e se adéqua ao padrão aparentemente neutro do jargão empresarial. O craque se transforma em “jogador diferenciado”, o reserva é a “peça de reposição”, o passe vira “assistência”, o campo é a “arena multiúso” e o torcedor é o “espectador”. As conquistas não são mais comemoradas em campo; mas em eventos fechados, sob a chancela de patrocinadores e com a participação do “torcedor
Douzemar, o cabra mais forte e nomeado da Parahyba, conseguiu manter-se incogitado até pinçarem a sua cabeça raspada no trem em Madureira; dali pra frente foi só um acumular de batuques, uma paixão com furores mais carregados a cada estação. Antes que ele botasse o pé para fora do ônibus na rua Pinheiro Machado, as lavadeiras despencavam dos morros em devassas cascatas, os meninos corriam por flores que pudessem jogar. Alertados pelo rádio, os taxistas acertavam os penteados, mulheres de mais trinta se maquilavam na direção. Os executivos branquearam as suas agendas, os bombeiros tomaram banho, as palestras motivacionais se cancelaram
A pessoa sai pelo mundo e acha que vai encontrando coisas ao acaso, mas as coisas que vai encontrando são apenas as coisas que as outras pessoas já encontraram antes, são as coisas que as pessoas mais encontram.
Somos todos culpados de tudo.
Dimitri Karamazov, em Os irmãos Karamazov de Dostoiévski
A diferença entre esquerda e direita, obviamente, é que os partidários da esquerda podem dizer todo ser humano me representa e insistem em fazê-lo.
Minha paixão pela humanidade é perfeitamente bipolar, alternando pessimismo e exaltação que não têm aparentemente nenhum estágio intermediário. Por vezes a mera diversidade das culturas tecidas pelas gentes – um sotaque, uma nova gíria, um folheto de cordel, descobrir que no Ceará rede de dormir às vezes se diz baladeira, descobrir que em italiano mappa é feminino e ponte é masculino
Nasrudin estava andando pelo bazar com um grupo de seguidores. Tudo que Nasrudin fazia seus seguidores copiavam imediatamente. A cada poucos passos Nasrudin parava, sacudia as mãos, tocava os pés e pulava gritando “Hu! Hu! Hu!”. Seus seguidores paravam e faziam a mesma coisa.
Um dos mercadores, que conhecia Nasrudin, perguntou-lhe à parte:
– O que você está fazendo, amigo velho? Quem é essa gente imitando você?
– Virei um sábio sufi – disse Nasrudin. – Esses são meus discípulos: estou ajudando-os a encontrar a luz.
– E como você sabe dizer quando eles já encontraram a luz?
– Essa é a parte fácil! Toda manhã
Stefan Zweig
De fato, nada deixa mais claro o imenso retrocesso que recaiu sobre o mundo depois da Primeira Guerra Mundial do que as restrições sobre a liberdade de deslocamento do homem e a diminuição dos seus direitos civis. Antes de 1914 a Terra pertencia a todos. As pessoas iam para onde desejassem e ficavam o quanto quisessem.
Não havia vistos nem autorizações de permanência, e sempre me dá prazer deslumbrar os mais jovens contando que antes de 1914 viajei da Europa para a Índia e para a América sem ter um passaporte e sem ter em qualquer momento visto um. Embarcava-se e desembarcava-se sem questionar e sem ser questionado: